quinta-feira, 9 de abril de 2009

A ANTROPOLOGIA NO QUADRO DAS CIÊNCIAS

Se busca situar a Antropologia Social no corpo das outras ciências, que elas em geral tocam em dois problemas fundamentais e de perto relacionados. Um deles diz respeito ao fato de que as chamadas ciências naturais estudam fatos simples, eventos que presumivelmente têm causas simples e são facilmente isoláveis. A matéria-prima da ciência natural, portanto, é todo o conjunto de fatos que se repetem e têm uma constância verdadeiramente sistêmica, já que podem ser vistos, isolados e reproduzidos dentro de condições de controle razoáveis. A simplicidade, a sincronia e a repetitividade asseguram um outro elemento fundamental das ciências naturais, qual seja: o fato de que a prova ou o teste de uma dada teoria possa ser feita por dois observadores diferentes, situados em locais diversos e até mesmo com perspectivas opostas.

As chamadas ciências sociais estudam fenômenos complexos, situados em planos de causalidade e determinação complicados. A matéria-prima das ciências sociais, assim, são eventos com determinações complicadas e que podem ocorrer em ambientes diferenciados tendo, por causa disso, a possibilidade de mudar seu significado, de acordo com o autor, as relações existentes num dado momentos e, ainda, com a sua posição numa cadeia de eventos anteriores e posteriores. Os eventos que servem de foco ao cientista social são fatos que não estão mais ocorrendo entre nós ou que não podem ser reproduzidos em condições controladas.

Tudo indica que entre as ciências sociais e as ciências naturais temos uma relação invertida. Nas ciências naturais existem problemas formidáveis no que diz respeito à aplicação e até mesmo na divulgação destes estudos. No caso do cientista social, as condições de percepção, classificação e interpretação são complexos, mas os resultados em geral não têm consequências na mesma proporção da ciência natural. São poucas as teorias sociais que acabaram tornando-se credos ideológicos. As chamadas teorias sociais são racionalizações ou perspectivas mais acuradas para problemas que percebemos. Os fatos que formam a matéria-prima das ciências sociais são, pois, fenômenos complexos, geralmente impossíveis de serem reproduzidos, embora possam ser observados. Podemos observar funerais, aniversários, rituais de iniciação, proclamações de leis, mas, além de não poder reproduzir tais eventos, temos de enfrentar a nossa própria posição, história biográfica, educação, interesses e preconceitos. O processo de acumulação que tipifica o processo científico é algo lento em todos os ramos do conhecimento, mas muito mais lento nas chamadas ciências do homem.

Mas de todas as diferenças, a mais fundamental é a seguinte: nas ciências sociais trabalhamos com fenômenos que estão bem perto de nós, pois pretendemos estudar eventos humanos que nos pertencem integralmente. Os homens não se separam por meio de espécies, mas pela organização de suas experiências, por sua história e pelo modo com que classificam sua realidades internas e externas. Apesar das diferenças e por causa delas, nós sempre nos reconhecemos nos outros, e a distância passa a ser o elemento fundamental na percepção da igualdade entre os homens. Um exemplo é o caso dos nomes, no qual é uma forma de sistema de diferenciação entre os grupos e indivíduos. A história da Antropologia social é a história de como esses diferentes sistemas foram percebidos e interpretados como formas alternativas - soluções e escolhas - para problemas comuns colocados pelo viver numa sociedade de homens.

No caso das ciências sociais o objeto é muito mais que isso, ele tem também o seu centro, o seu ponto de vista e as suas interpretações que, a qualquer momento, podem competir e colocar de quarentena as nossas mais elaboradas explanações. A raiz das diferenças entre ciências naturais e ciências sociais fica localizada, portanto, no fato de que a natureza não pode falar diretamente com o investigador. Sabemos que a disciplina tem pelo menos três esferas de interesse claramente definidas e distintas. Uma delas é o estudo do homem enquanto ser biológico, dotado de um aparato físico e uma carga genética. Esse é o domínio ou o campo da chamada Antropologia Biológica. O especialista em Antropologia biológica dedica-se à análise das diferenciações humanas utilizando esquemas estatísticos, dando muito mais atenção ao estudo das sociedade de primatas superiores, à especulação sobre a evolução biológica do homem, ou está dedicado ao entendimento que permitam explicar diferenciações de populações e não mais de raças.

A segunda esfera de trabalho da Antropologia em geral diz respeito ao estudo do homem no tempo, através de monumentos, restos de moradas, documentos, armas, obras de arte e realizações técnicas que foi deixando no seu caminho. Essa esfera de trabalho antropológico é conhecida como Arqueologia. A arqueologia é uma Antropologia social, só que está debruçada em cima de estudos de um sistema de ação social já desaparecido. O arqueólogo estuda esses resíduos deixados por uma sociedade, depois que seus membros pereceram. E sua tarefa é a de reconstruir o sistema agora que ele somente existe por meio de algumas de suas cristalizações. O arqueólogo trabalha por meio de especulações e deduções, numa base comparativa, balizando sistematicamente seus achados do passado com o conhecimento obtido pelo conhecimento contemporâneo de sociedades com aquele mesmo grau de complexidade social.

Os valores sociais têm sido chamados de cultura. A esfera da Antropologia cultural é o plano complexo segundo o qual a cultura não é somente uma resposta específica. A antropologia social, ou Etnologia, permite descobrir a dimensão da cultura e da sociedade, destacando os seguintes planos: Um plano instrumental e um plano cultural ou social. O plano instrumental é um plano das coisas feitas ou dadas e a sua concepção e importância está muito ligada à perspectiva segundo a qual o homem foi feito aos poucos: o primeiro plano físico, depois o plano social.

No plano cultural, a Etnologia e Antropologia cultural permitem tomar conhecimento, o mundo humano forma-se dentro de um ritmo dialético com a natureza. Foi respondendo à natureza que o homem modificou-se e assim inventou um plano, reformulando a própria natureza. Vê-se que a resposta cultural é muito diferente da instrumental. Ela permite a superação da necessidade e também o estabelecimento de uma diferenciação por causa mesmo da necessidade.

Temos em Antropologia pelo menos três planos de consciência. Pode-se incluir um quarto plano, o mais fundamental de todos. Refere-se ao plano da lingüística, do estudo da língua, esfera de consciência absolutamente básico na transmissão. O estudo da Antropologia biológica situa a questão de uma consciência física no estudo do homem. No plano da consciência que faz parte da Antropologia biológica, especulamos sobre mudanças intrínsecas do corpo e cérebro humanos. A Antropologia biológica nos coloca diante dos espaços primordiais, dos gestos decisivos, do tempo que corre numa escala fria, lenta, infinita.

O estudo da Antropologia Cultural e/ou Social abre as portas de realidade diversas. A Arqueologia nos remete ao mundo de um tempo onde os acontecimentos passam a ser decisivos não mais em escala da espécie humana como uma totalidade, mas como elementos que permitem diferenciar civilizações, sistemas produtivos e regimes políticos específicos. De fato, na medida em que se deixa o tempo biológico e penetra-se no tempo arqueológico, começo a vislumbrar a sociedade e a cultura.

As diferenças entre as Antropologias e a Antropologia Social dizem respeito fundamentalmente à descoberta do social como um plano dotado de realidade, regras e de uma dinâmica própria. Fatores biológicos e fatores naturais são utilizados muitas vezes como sinônimos, designando o mundo natural como uma realidade separada e, às vezes, em oposição à chamada realidade humana ou social. Numa palavra, o homem está em oposição à natureza numa atitude que não é nada contemplativa, mas ativa. Ela visa o seu domínio e controle, o seu comando. O problema sociológico nunca será resolvido adequadamente pela visão utilitarista da cultura, mas de uma posição onde a consciência terá que ser discutida e levada em consideração.

Como quarto ponto, temos que a visão do social ancorada no biologismo ou no naturalismo, e atualizada na Antropologia moderna, ou visão instrumentalista, utilitarista ou evolucionista da cultura, reduz as diferenças sociais a respostas culturais, deixando de inquirir sobre a diversidade humana. Podemos dizer que o biológico diz respeito ao interno, ao que não é controlado pela consciência e pelas regras inventadas. O social é o oposto. A ação social é toda a ação que não pode ser adequadamente explicada em termos de fatores de hereditariedade e do ambiente não-humano. O social é tudo aquilo que independe da natureza interna ou externa, sendo mais adequadamente tratados quando são estudados uns em relação aos outros. O social não decorre de um impulso natural, nem de uma resposta a um estímulo externo, nem de reação à condição básica de que os homens têm uma existência individual.

Existe uma visão muito importante no que diz respeito as diferenças entre a sociedade e a cultura. Sem uma tradição (ou seja, todo o processo que passa de uma geração à outra, permitindo que se possa diferenciar uma comunidade da outra), uma coletividade pode viver ordenadamente, mas não tem consciência do seu estilo de vida. E ter consciência é poder ser socializado, isto é, é se situar diante de uma lógica de inclusões necessárias e exclusões fundamentais. A consciência de regras é uma forma de presença social. Como conseqüência disto, a tradição viva e a consciência social subtendem responsabilidade. Uma tradição viva é um conjunto de escolhas que necessariamente excluem formas de realizar tarefas e de classificar o mundo.

Ter tradição significa vivenciar as regras de modo consciente, colocando-as dentro de uma forma qualquer de temporalidade. A tradição torna as regras passíveis de serem vivenciadas, abrigadas e possuídas pelo grupo que as inventou e adotou. Sociedades sem tradição são sistemas coletivos sem cultura.

Podemos dizer que sociedades sem cultura apenas acontecem no caso dos "animais sociais". Pode haver cultura sem sociedade, mas não uma sociedade sem cultura. Sociedade e cultura, o primeiro indica conjuntos de ações padronizadas; o segundo expressa valores e ideologias que fazem parte da outra ponta da realidade social ( a cultura ). Uma se reflete na outra, mas nunca uma pode reproduzir a outra. A cultura trabalha sempre com formas puras que se ajustam ou não à sua reprodução concreta no mundo da sociedade.

A perspectiva da realidade humana a partir da noção de sociedade remete inevitavelmente a uma orientação sincrônica, integrada, sistêmica e concreta de pessoas, grupos, papéis e ações sociais que são muitas vezes vistos como um organismo.

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